Um acordo com a morte
A rua estava vazia e era quase
meia-noite. Ela caminhava alternando os passos entre os ladrilhos, o vestido
longo e preto balançando na neblina. A casa era no fim da rua.
Ela parou frente a uma placa
amarela muito suja, com dizeres em outra língua (acreditava ser grego). As
letras em vermelho se destacavam e logo abaixo desta placa a porta de madeira
estava entreaberta. Ela esboçou um leve sorriso no canto da boca, achando
engraçado que a brisa não tivesse empurrado a porta e a fechado. Enfim entrou.
A casa era bem maior do que
parecia vista de fora. A parede da direita do hall de entrada era coberta por
quadros de crianças tristes, alinhados perfeitamente em um papel de parede
camurça na cor vinho. Ela passou as pontas dos dedos na parede e arrepiou-se
quando sentiu o toque gelado.
A sala era modesta e com dois
grandes sofás na cor verde-musgo. Tudo cheirava a mofo e um dos sofás tinha uma
grande mancha seca que parecia ter secado no sol. Ela passou pela sala
rapidamente em direção ao fim do corredor.
Parou frente a uma porta dourada.
Não era conhecedora do assunto, mas tinha certeza que era ouro. A maçaneta
chamou a sua atenção, pois tinha o formato de um osso de dedo médio. Tocou a
porta para sentir os relevos e percebeu que os formatos na porta eram ossos de
diversas partes do corpo. Não era muito alta, então logo acima de sua cabeça o
olho mágico se mexia parecendo real. Fechou os dedos para bater na porta, mas
antes que pudesse bater, esta se abriu.
Uma sala realmente elegante, mas
este cômodo não cheirava a mofo. O odor era diferente, similar ao almíscar. Uma
estante à esquerda reunia a vasta coleção de livros antigos, de páginas
amareladas e capa dura, com letras garrafais e douradas nas laterais. De longe
enxergou o nome Macbeth. Engraçado, a
morte gostava de ler Shakespeare.
A porta pequena e negra se abriu
no canto direito. Ela mal tivera tempo de observar quão pequena era a porta.
Media aproximadamente meio metro. E o mais impressionante foi que a figura que
de lá saiu media mais de dois metros, com certeza.
Vestia um longo sobretudo preto
com um capuz que cobria toda a testa e fazia sombra sobre o rosto. A moça moveu
a cabeça para a direita e depois para a esquerda, na tentativa de encontrar um
foco de luz que deixasse mostrar a face por trás do capuz, mas era impossível.
O odor almíscar agora se misturava com um cheiro muito forte de terra.
A estranha figura levantou a mão direita e apontou com o indicador uma
cadeira com estofado vermelho sangue e estrutura em madeira. Ela não pôde
deixar de observar o tamanho extremamente exagerado daquele dedo, com unhas
compridas e amarelas. Seriam neste tom os dentes da morte?
- Não, meus dentes são negros. –
A voz grossa e temerosa a fez gelar. A criatura ouvira seus pensamentos! – Por
favor, sente-se querida.
Ela não pensou duas vezes e se
sentou. A cadeira estava praticamente no meio do cômodo e ela sentiu falta de
uma mesa ou escrivaninha à sua frente, para que a morte pudesse sentar
encarando-a. Estranho.
- O escritório da morte não
precisa de escrivaninha. A morte não se cansa. – Droga! Mais uma vez a maldita
ouvira sua mente.
- Desculpe. – A voz da moça soou
trêmula.
- Não estou aqui para
brincadeiras. Sinto uma alma pura e um cheiro de inocência vindo de você, mas
também sinto um irrefutável desejo de vingança. Isto é muito bom.
A morte andava em círculos em
volta dela, o frio foi ficando intenso. Casa pelo do seu corpo se arrepiava.
Finalmente a morte depositou seis longos dedos em seu ombro e ela sentiu um
cheio que parecia álcool ou acetona embebedá-la. Era formol.
- Um membro do inimigo.
Ela engoliu em seco. Sentiu a
garganta quase sangrar.
- Feito.
A morte a conduziu até a pequena
porta. Sem acreditar que conseguiria, entrou no cômodo oculto. Sentiu-se bem
novamente.
A câmara era perfeita para toda e
qualquer sessão de tortura que desejasse realizar. Cordas penduradas, barras de
aço, chicotes, vidros de ácido em quantidades sem igual.
À direita estava ele. O homem que
ela tanto desejara matar.
- Vá em frente. – A morte disse e
tocou o ombro dela de leve, empurrando-a para frente.
Ela titubeou e começou a dar
lentos passos em direção ao homem pendurado de cabeça para baixo. Ele tentava
berrar, mas a boca estava coberta por um generoso pedaço de fita. Ela engoliu
em seco ao chegar mais perto.
- Se conseguir colocar em prática
os seus desejos mais obscuros de morte, te darei tudo o que almeja. – A morte sussurrou
no ouvido da moça.
Ela simplesmente deixou aquele
sentimento tomar conta de seu corpo. Analisava o corpo pendurado, a língua se
movendo de um lado para o outro dentro da boca, maquinando a coisa mais macabra
que podia fazer com ele.
Ela ergueu a mão direita e
apanhou um bisturi comprido que estava alinhado numa mesa de madeira ao lado de
muitos outros instrumentos cirúrgicos. Umedeceu os lábios. Ergueu o bisturi na
altura da região pélvica do homem, onde um órgão fétido balançava. Será que
conseguiria fazer aquilo?
-Você consegue! É a minha garota.
– A morte falou, mas sem mexer os lábios negros. Falou dentro da cabeça dela.
Em um único e brusco movimento
ela arrancou o órgão genital do homem. Os urros de dor faziam eco naquele
cômodo e o sangue escorria desde a virilha, fazendo uma poça no umbigo e caindo
como água de uma torneira aberta na face dele. Quando misturado às lágrimas, o
sangue ficou ralo, mas sem perder a cor vermelha vibrante que ela tanto gostava
de ver.
- Acho que já é o bastante. – Ela se voltou para a criatura de preto
atrás dela. Cabisbaixa, os cabelos pretos caíam molhados de suor em seu rosto.
- Você é capaz de mais. – A morte
roçou o polegar gelado e amarelado na face dela e neste momento ela sentiu algo
obscuro dominá-la. Os olhos que eram castanhos ficaram vermelhos.
Ela se virou em direção à mesa de
artefatos para tortura e apanhou uma faca pontuda em um formato que lembrava as
ondas. Enfiou a faca com toda a força na barriga do homem pendurado e puxou sem
piedade. O intestino se prendera às “ondas” da faca e agora estava caindo,
quente e macio. Escorregava pelo peito dele, passava pelo rosto e caía no chão.
Ele respirava com dificuldade, os
olhos lutavam para ficar abertos devido ao sangue que penetrava. O nariz também
absorvia o sangue e a vítima começou a vomitar. O vômito era espesso e vermelho
claro, uma mistura das últimas tripas com sangue escorrendo em seu rosto.
Ela apreciou por alguns instantes
aquela imagem e sentiu-se vingada. Aquele fora o homem que lhe causara a maior
dor e agora ela se deliciava com sua agonia. Ficou admirando o desespero dele
por mais alguns minutos e enfim puxou parte de seu intestino delgado até o
pescoço e enrolou com muita força. Estrangulou-o e viu a vida deixar seus olhos
cretinos.
Agora só lhe restava receber a
recompensa que a morte prometera, se é que poderia haver recompensa maior do
que presenciar o sofrimento daquele ser.